É preciso pensar modelos alternativos que vão além dos especialistas e focam em atendimento integrado entre diversos atores
A pandemia de Covid-19, que apenas no Brasil ocasionou a morte de mais de 700 mil pessoas e deixou famílias enlutadas, colocou o tema da saúde mental em evidência. Apesar de termos acesso a dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que, já em 2019, apontavam o Brasil como o país mais ansioso do mundo, o segundo mais estressado e o quinto mais depressivo, o tema ainda segue sendo relegado ao rol de especialistas.
“No Brasil, temos um quadro de insuficiência de profissionais que atuam com saúde mental. Portanto, não podemos pensar que trata-se de um assunto apenas para especialistas. Deve ser uma preocupação de todos”, afirmou o psicanalista Christian Dunker, coordenador no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise.
Ele esteve no segundo dia do 12º Congresso GIFE – Desafiando Estruturas de Desigualdades na mesa Saúde mental na gestão e atuação da filantropia brasileira ao lado de Tide Setubal, da Fundação Tide Setubal; Clélia Prestes, do AMMA Psique e Negritude; Luciana Barrancos, do Instituto Cactus; e Rayssa Winnie, consultora na área de educação e impacto social.
Christian Dunker defendeu uma ruptura com a “cultura de especialistas”. Para o psicanalista, é preciso pensar modelos alternativos de formação de pessoas para atuar em saúde mental. O caminho está na disponibilização de ferramentas e dispositivos simples que permitam localizar, encaminhar e dar suporte em rede para o sofrimento psíquico. “Precisamos apostar em uma formação básica para pessoas que cuidam de outras pessoas. Isso implica em rompermos com uma formação hierarquizada e verticalizada que privilegia alguns indivíduos com um suposto saber ”, afirmou.
Em destaque:
- Formação em saúde mental precisa atingir a base para dar mais agilidade ao encaminhamento de tratamentos.
- Saúde precisa ser entendida a partir de uma lógica comunitária e integrada, especialmente em grupos historicamente negligenciados, como a população negra.
- Problemas psíquicos são a maior causa de queda de produtividade e absenteísmo no trabalho, por isso precisam ser encarados de maneira sistêmica.
Em consonância com a linha de pensamento de Christian Dunker, Tide Setubal, que também é psicanalista, levantou a importância da atuação em rede quando nos debruçamos sobre o tema . “Há uma dimensão coletiva e social da saúde mental. A gente tende a individualizar, mas tem a ver com o coletivo e o contexto em que estamos inseridos”, afirmou.
Desde 2018, a Fundação Tide Setubal tem uma linha de atuação específica em saúde mental que contempla tanto o público interno, apostando na diversidade e em canais de escuta, quanto o externo, por meio de um trabalho transversal nos projetos parceiros.
Um dos programas destacados por ela é o Territórios Clínicos que contempla cinco princípios de atuação:
- Parceria da sociedade civil com políticas públicas.
- Descentralização do acesso a aparatos e ferramentas de promoção de saúde mental.
- Apoio à formação de profissionais de saúde mental (longa e cara).
- Apoio a pesquisas focadas em territórios periféricos, contemplando recortes de classe, gênero e raça.
- Promoção de debates em torno do investimento privado em diferentes espaços.
Na prática, entre 2021 e 2022, foram sete organizações apoiadas e algumas conquistas importantes, como o fortalecimento institucional dessas instituições, a estruturação de coletivos, ampliação de equipes e atendimento e, por fim, a formação de redes. Em agosto deste ano será anunciado um novo edital público para a segunda edição do Territórios Clínicos.
Uma das organizações apoiadas pelo programa é o Instituto AMMA Psique e Negritude, organização fundada por psicólogas e ativistas que por meio da atuação com formação e prática clínica buscam identificar, elaborar e desconstruir o racismo e seus efeitos psicossociais. Na mesa, o instituto foi representado por Clélia Prestes, que fez um convite para pensarmos a saúde de forma integral. “O território da saúde pode ser pensado como uma encruzilhada. Ou seja, como um espaço multidimensional, uma conjunção de possibilidades. Estamos falando, portanto, das dimensões coletiva, social, ecológica e cósmica.”
A saúde, portanto, pressupõe uma integração harmoniosa entre recursos e demandas, não sendo viável que se trate como uma demanda individual, quando a história da população negra é feita de ataque e privações. “Se a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil, a minha cabeça está no meu filho que não está aqui ao meu lado, porque ele é um alvo”, comparou Clélia Prestes.
Falta de investimentos custa caro
Rayssa Winnie lembrou que, ainda em 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou dados mostrando que a depressão se tornaria a doença mais incapacitante do mundo. Nesses três anos, com a pandemia, a previsão se concretizou. E isso impactou também as empresas, que tiveram que lidar com as consequências do isolamento social para a saúde mental de seus funcionários. “É necessário ter a perspectiva da prevenção, a ser trabalhada de forma intersetorial por políticas públicas. Muito tem se falado sobre os transtornos mentais e é preciso trazer esse debate para dentro da nossa prática, do ISP”.
Luciana Barrancos, do Instituto Cactus, trouxe uma provocação diretamente às empresas. O impacto econômico dos problemas de saúde mental é gigantesco. O Fórum Econômico Mundial observou que os transtornos de saúde podem custar à economia global até US$ 16 trilhões entre 2010 e 2030 se os sistemas de tratamento não forem reestruturados.
A falta de atenção aos cuidados com a saúde mental leva ao aumento do absenteísmo e da rotatividade no trabalho, além de prejudicar a produtividade. “Alguns estudos apontam que de 20% a 50% dos casos de absenteísmo tem relação direta com a saúde mental. As empresas precisam ter um olhar tridimensional que contemple suas estruturas, equipes e indivíduos. Não dá para tratar esse tema com uma cultura de apagar incêndio. O tema deve ser olhado estruturalmente e de forma sistêmica e não fazendo remendos”, finalizou Luciana Barrancos.
De 12 a 14 de abril de 2023, o 12º Congresso GIFE — Desafiando Estruturas de Desigualdades — debateu as formas de superar as desigualdades que atravessam a sociedade.
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Apoiada pela Fundação Bradesco, Vale, Fundação ArcelorMittal, Fundação Ford, Fundação Itaú e Porticus, a 12ª edição do Congresso GIFE – Desafiando Estruturas de Desigualdades – também celebra os 35 anos da Constituição Federal e do seu Artigo 5º, trecho que estabelece direitos fundamentais.